. As mulheres vivem uma guerra. E não somente em Aleppo. Estes posts – são dois – não são bonitos, nem legais. Também não foi bom escrevê-los, nem lembrar das narrativas para indicar os temas. Mas ambos são necessários. Porque não dá para ignorar : a gente vive guerras.
Está lá: na história, nas artes plásticas, na fotografia e no cinema. Como também está no noticiário. Agora são as mulheres de Aleppo, na Síria, que estão se matando ou sendo assassinadas pelos familiares porque não querem ter seu corpo violentado. Digo agora, porque não é de hoje que isso acontece no planeta. Com mulheres, com frequência permanente.
Plutarco, Heródoto e Tito Lívio na Antiguidade clássica, narraram os estupros de guerra, e um deles, inclusive, teria originado a primeira geração da população romana; o Rapto das Sabinas (lenda?).
Os bárbaros realizavam a violência sexual como prática de guerra comum, e também para conseguirem “esposas”, quando os vizinhos não se interessavam em acordos diplomáticos.
Estupros em massa aconteceram por toda a Idade Média, ao longo dos séculos, e chegaram bem vivos ao século XXI , enquanto, nós mulheres, em países deseducados, misóginos e sexistas, morremos como moscas por conta da quantidade variada de violência que sofremos.
Por exemplo, no final da Segundo Guerra Mundial, na Alemanha, foram dois milhões de mulheres estupradas pelos exércitos aliados, principalmente pelos soldados russos - acobertados pelos Estados Unidos. Os relatos contam que mulheres “de oito a oitenta anos”, sofriam todo o tipo de abuso. Não preciso dizer que as mulheres judias também sofreram com a prática nos campos de concentração nazistas.
A França, na mesma guerra, acobertou os crimes cometidos pelos goumiers, as milícias marroquinas sob comando francês. A população deu um nome ao estupro em massa de “Marocchinate”.
Vittorio de Sica, filmou o roteiro de Cesare Zavattini, baseado na novela de Alberto Moravia sobre o evento, em 1960. No filmaço do pós-neorrealismo italiano,Duas Mulheres, acompanhamos a fuga de Cesira, uma viúva, e a filha adolescente Rosseta, quando Roma sofria um avassalador bombardeio dos aliados. Ela abandona a cidade e corre para o vilarejo das montanhas onde cresceu, aguardando a libertação pelos aliados. Quando ambas estão no caminho de volta a Roma são estupradas pelos tais, goumiers, pelos aliados, aqueles que iam salvá=las, em uma cena clássica do cinema, que, parece=me, é lembrada e pensada apenas como ficção. AINDA.
Na guerra da Bósnia=Herzegovina, durante a década de 1990, o horror novamente foi levado ao extremo em todos os sentidos, seja na variedade de torturas, seja no sucesso da limpeza étnica promovidas. Estima=se que durante a guerra civil que destruiu o país, de 20 mil e 50 mil mulheres foram violentadas em campos de estupros,dados extraoficiais contam mais de 100 mil. (HUGHES, Stuart, BBC).
E sim. É isso mesmo que você leu: campos de estupro. Locais específicos (casas, escolas, igrejas, motéis, residências privadas) onde as vítimas eram escravizadas e abusadas por dezenas de homens durante anos. A maioria das vítimas eram bósnias-muçulmanas. Os criminosos: soldados sérvios. No entanto, os exércitos de ambos os lados, se utilizavam do crime.
O filme da diretora Isabel Coixet, A Vida das Palavras, de 2005, produzido pela El Deseo, de Pedro Almodóvar, narra dolorosamente a história de uma destas “sobreviventes” e se utiliza em algumas medidas, da mesma construção do cinema de De Sica. Durante uma hora acompanhamos as ações e relações rotineiras da mulher, que vai nos situando na vida da personagem. Uma hora e tanto depois, temos a “revelação" que nos constrange pelo horror.
Outro exército, o sudanês foi responsável por, além de massacres a população do próprio país, dividido por milícias em guerra, também estupros em massa, principalmente em Darfur, em 2014. Aqui o relatório.
E tem ainda ...
...
Bem, eu não precisaria parar por aqui. Mas paro. Exemplifiquei de memória. Há tantos casos, quantos você queira procurar. Infelizmente.
O estupro é visto como um crime menor, frente a outros, porque, também, envolve uma mulher, desqualificada de forma reiterada pelas religiões e práticas culturais de tantas sociedades, sejam elas orientais ou ocidentais.
Não é somente, “desejo” (WTF!) “sexual” (hein?!) e frustração ou ódio, como pensam alguns, que levam um soldado, um homem, a estuprar uma mulher. Há também o encorajamento coletivo dentro de um território que despreza mulheres, em qualquer nível, onde as guerras são outras, e culpabiliza a vítima pelo crime que sofreu.
Talvez ajude a entender como a noção de violência contra a mulher é diluída na mídia, quando se lê um textinho, como este publicado no site da Folha, que descreve assim, um dos maiores estupradores da história:
“Um só homem, que viveu há cerca de mil anos em algum rincão da atual Mongólia, realizou um feito reprodutivo sem precedentes na história da humanidade: espalhou descendentes masculinos por uma área que vai do Pacífico ao Cáspio, gente que responde por 8% dos homens que vivem nas fronteiras do antigo Império Mongol, ou 12 milhões de pessoas, se as estimativas estiverem corretas. Flagrado graças a seu cromossomo Y -a marca genética da masculinidade- esse pai de multidões, dizem geneticistas britânicos, foi muito possivelmente Genghis Khan (1162-1227), o guerreiro nômade que levou os mongóis a governar a maior extensão contínua de terras da história humana”.
Em momento nenhum da matéria existe a palavra “ESTUPRO”. Mesmo que o repórter relate isto:
“Numa campanha militar, por exemplo, o produto dos saques era dividido igualmente entre soldados e comandantes, mas todas as mulheres jovens tinham de ser enviadas para Genghis Khan."
Para terminar o cidadão objetifica a mulher:
“Se a hipótese da equipe de Oxford estiver correta, eles podem ter dado de cara com um tipo de seleção natural muito raro na espécie humana, causado não pelas vantagens inerentes de possuir esse ou aquele gene, mas por pertencer a um clã que concentrou o poder (e as mulheres) de um continente inteiro com uma intensidade sem precedentes." (LOPES, Reinaldo, Folha de São Paulo)
WOW! Que cara a ser invejado.
Sob o mito da objetividade jornalística (científica), o "profissional" mantém e reproduz dezenas de preconceitos. Mais exemplos deste tipo de jornalismo, só que ainda mais escandaloso, apelidado de jornalismo punheteiro, no Brasil. Clique aqui para ver mais exemplos.
Tudo isto, então, é muito atual.
No réveillon, da virada para 2016, foram 1200 ataques a mulheres, perpetrados por 2000 homens na Alemanha, por exemplo. Mulheres tiveram as roupas rasgadas, foram apalpadas, tiveram as calcinhas arrancadas, foram agarradas, arranhadas e penetradas por dedos de homens, nas ruas de Cologne, Hamburg e Stuttgart. Os ataques foram cometidos por grupos de homens, a maioria denunciada e presa era de imigrantes que pediam asilo naquele momento ( ingrediente perigosíssimo se somado a xenofobia crescente). Seja de qual etnia forem os homens cercavam as vítimas e as agrediram, por conta da religião que professavam, um combustível para os crimes cometidos contra mulheres em qualquer século, hoje e sempre.
Eventos de música também foram palco deste tipo de violência no resto do ano na Alemanha. É bom dizer também que ataques acontecem e são cometidos por homens de qualquer etnia, em qualquer lugar, basta que o cidadão cresça em uma família e sociedade que desumanize a menina , a mulher, e que dê a ela um papel bem idiota, limitado e específico e que use de toda a brutalidade possível para fazê=la se adaptar. Se ela não o faz... Aí, ela é punida, claro, e de várias formas.
Importante dizer também que o que a maioria daqueles homens fez na noite do ano novo sequer é considerado crime naquele país. As alemãs ficaram horrorizadas com as leis que não oferecem qualquer guarda a mulher vítima de violência em casa ou na rua. “É mais fácil prender o cara que roubou o celular de uma mulher”, disse um policial, “do que o cara que enfia o dedo na vagina dela no meio da rua”. Dá para acreditar? Nem elas. E tome manifestação!
Ou ainda:
Aqui, do lugar que falo, que falamos, a misoginia é institucionalizada (como em quase todo o mundo) por conta de uma sociedade extremamente opressora e machista. Fácil provar:
· O estupro era uma prática comum na tortura realizada por militares brasileiros durante a ditadura militar, mas as estudantes “tiveram o que mereceram”.
São 30 homens adultos contra uma mulher desacordada e é contra ela que homens e mulheres (?????!) rosnam.
· São meninas de 15 anos que eram oferecidas como ingresso em festas de empresários pedófilos e são contra ELAS que as vozes vomitam.
· São meninas pobres, aliciadas na porta da escola por um pastor, e levadas a um sítio, onde recebiam o equivalente a dois meses de salário do pai trabalhador braçal, com políticos e empresários do local, e as depravadas eram elas porque esta é uma sociedade adoentada onde se tem empatia pelo opressor.
Eu vou parar novamente por aqui. Exemplos são vários. Diários. Porque ali fora, ou dentro de casa, para as mulheres, pode ser uma guerra cotidiana. E é.
Mulheres e meninas são tratadas como mercadorias, como objetos, aprendendo a se reconhecerem assim, inclusive,– seja na guerra do outro lado do mundo, seja nesta que elas ,– nós, - vivemos todos os dias. Sem esquecer que alguns estupros são de outra ordem, como: trabalhar mais, estudar mais e ganhar menos. Tudo isso é parte do problema.
O que será preciso para as pessoas pensarem sobre tudo isso? Sobre o próprio comportamento e postura? A morte, a dor, a violência, o desrespeito, o assédio, o estupro se achegarem perto de quem se ama?
Porque não agora?