João Cabral de Melo Neto sempre caiu no vestibular e sempre cai no Enem. Parece-me, no entanto, que muita gente nunca entendeu uma palavra da obra dele, pelo que ando lendo nas redes sociais, em vista da "polêmica" prova do Enem.
Ele publicou "Funeral de um lavrador", em Morte e Vida Severina - uma joia da língua portuguesa, reconhecida mundo afora - em 1955. Já tinha sido então perseguido, acusado de comunismo. Em 1965, Chico Buarque, um quase desconhecido, em meio ao golpe militar, musicou o poema.
Sempre que eu via o abandono do povo, do agricultor familiar, nas disputas e tensões da reforma agrária nos meus anos de Incra - quando eu me deparava com a realidade bruta e desigual - este poema pesava no peito e depois ficava boiando na superfície da memória, na minha caixa craniana. Sem dó.
Era a trilha sonora daquelas cenas.
O vídeo é uma parte de um especial produzido pela Rede Globo e ganhou o Emmy Internacional de 1982.
Morte e Vida Severina retrata a vida de Severino, lavrador que deixa o sertão nordestino e segue em direção ao litoral, na ânsia por melhores condições de vida. No caminho de Severino, outros e outras que, como ele, tentam sobreviver a tragédia de terem nascido pobres no Brasil .
Poema
Funeral de um lavrador
Esta cova em que estás, Em palmos medida, É a conta menor que tiraste em vida,
É de bom tamanho, nem largo nem fundo, É a parte que te cabe deste latifúndio,
Não é cova grande, é cova medida, É a terra que querias ver dividida,
É uma cova grande, para teu pouco defunto, mas estarás mais ancho que estavas no mundo,
é uma cova grande para teu defunto parco, Porém mais que no mundo te sentirás largo,
É uma cova grande, para tua carne pouca, Mas a terra dada não se abre a boca.