* Este post faz parte do ensaio: A CIDADE DAS MULHERES MORTAS: A VIOLÊNCIA REITERADA CONTRA AS MULHERES NA PRODUÇÃO FÍLMICA E SERIADA. Ele será publicado na obra coletiva 15 anos da Lei Maria da Penha: Avanços e Desafios (Coordenadores: Bruna I. Simioni Silva; Larissa Ribeiro Tomazoni e Paulo Silas Filho).
Os arquétipos cinematográficos
Arquétipos são padrões usados como fundação na produção dos personagens que reconhecemos nos filmes que vemos. Como mencionei no artigo, Jung, desenvolveu a teoria do inconsciente coletivo, que originou a noção de arquétipo.
Joseph Campbell foi o especialista em mitos que em 1949 publicou o livro O Herói de Mil Faces. O livro identifica a relação entre símbolos atemporais e nossos sonhos enquanto humanas e humanos. Em outro livro, O Poder do Mito. ele fala da reiteração a uma verdade que é subjetiva e arquetípica, e da qual tratam tanto as religiões quanto as fábulas e conto de fadas até os dias atuais.
"Quer escutemos, com desinteressado deleite, a arenga (semelhante a um sonho) de algum feiticeiro de olhos avermelhados do Congo, ou leiamos, com enlevo cultivado, sutis traduções dos sonetos do místico Lao-tse; quer decifremos o difícil sentido de um argumento de Santo Tomás de Aquino, quer ainda percebamos, num relance, o brilhante sentido de um bizarro conto de fadas esquimó, é sempre com a mesma história que muda de forma e não obstante é prodigiosamente constante que nos deparamos, aliada a uma desafiadora e persistente sugestão de que resta muito mais por ser experimentado do que será possível saber ou contar. Em todo o mundo habitado, em todas as épocas e sob todas as circunstâncias, os mitos humanos têm florescido; da mesma forma, esses mitos têm sido a viva inspiração de todos os demais produtos possíveis das atividades do corpo e da mente humanos (CAMPBELL, p.5, 1997).
Na narrativa, o herói sai do seu conforto (ou é obrigado a fazê-lo), parte em uma aventura e retorna. Ele responde a um chamado, descobre a sua vocação e segue um ciclo que simboliza a vida e o retorno às raízes, em uma busca subjetiva. Campbell consolidou a estrutura da jornada do herói em 18 estágios divididos em três atos.
Ato 1 – Partida
Mundo cotidiano
Chamado à aventura
Recusa do chamado
Ajuda sobrenatural
Travessia do primeiro limiar
Barriga da baleia
Ato 2 – Descida, iniciação e penetração
Estrada de provas
Encontro com a deusa
A mulher como tentação
Sintonia com o pai
Apoteose
A grande conquista
Ato 3 – Retorno
Recusa do retorno
Voo mágico
Resgate interior
Travessia do limiar
Senhor de dois mundos
Liberdade para viver
O arquétipo é, então, pensando na criação de uma narrativa, como um traje, uma máscara, que a/o roteirista "veste a personagem" de acordo com a história que quer contar.
Foi o roteirista Christopher Vogler, no entanto, que estruturou esses conceitos e escreveu quase um guia para a roteirização de histórias - quando trabalhava para a Disney. No livro, ele exemplifica os principais arquétipos utilizados na produção fílmica, principalmente nos roteiros hollywoodianos.
É importante dizer que a Jornada do Herói já foi usada para pensar e estruturar personagens femininos, mas não foi pensada para mulheres. A "adaptação" apenas do uso da Jornada para mulheres foi criticada e algumas autoras lançaram uma versão da Jornada da Heroína, que veremos em outros posts. ;) Vou também adicionar exemplos do uso da jornada do herói em narrativas que contam a história de mulheres, ok?
Os principais arquétipos de Vogler são:
O Herói – É aquele ou aquela que se sacrifica, de alguma forma, pelo bem dos demais. Geralmente é o protagonista que mais gera identificação com o público.
O Mentor – É o/a guia ético e espiritual do herói. Ele ensina algo de valioso para que a jornada seja mais frutífera. Geralmente é uma figura mais idosa e sábia.
O Guardião do limiar – É um dos desafios que o protagonista deve enfrentar para alcançar seu objetivo. Podem ser pessoas ou situações. Como a de Don Lockwood no filme Cantando na Chuva. Ele vê sua carreira ameaçada com a chegada do cinema sonoro e é "chamado á aventura".
O Arauto – Também não precisa ser necessariamente um personagem - pode ser um acontecimento, mas é algo que leva a/o heróina/herói a se mover na história. Como a chega de EVA , na animação Wall-E.
O Camaleão – O camaleão é o arquétipo mais interessante, na minha opinião. Ele está envolvido em sombras e sempre existe a dúvida se ele ou ela é um aliado/a ou inimigo/a.
A Sombra – É o antagonista, o vilão, a inimiga, o mal encarnado. Confronta o herói e quer destruí-lo.
O Pícaro - É o alívio cômico para a narrativa. É o equilíbrio na tensão e no drama da narrativa.
São 12 passos para escrever com o método de Vogler.
Mundo Comum – É o long shot, o grande plano geral, a ambientação onde somos apresentados a/ao personagem em sua vida - geralmente monótona ou confortável. A história dele deve ser parecida/possível com a de qualquer pessoa para causar a empatia em algum grau.
Chamado à aventura - Há um acontecimento, um momento (uma situação, uma pessoa, uma convocação, etc.) que conclama o herói a sair da conformação e aceitar um chamado, uma missão. Como em Jogos Vorazes, de 2012, por exemplo, quando Katniss (Jennifer Lawrence) é confrontada com a iminência da irmã entrar para os jogos, faz ela agir e se oferecer no lugar dela; é Neo em Matrix, de 1999, diante das duas possibilidades oferecida por Morpheus: a pílula azul ou a vermelha. Ele aceita o chamado e toma a pílula
A recusa - A insegurança, a falta de amor próprio e de fé em si próprio, a falta de responsabilidade, a imaturidade (etc.) faz com que o herói entre em pânico e desista da aventura.
O encontro com o Mentor - geralmente alguém sábio surge na vida do protagonista. Uma figura que protege, incentiva, provoca o herói a ser o melhor de si mesmo, É Obi-Wan Kenobi (Alec Guinness), em Star Wars IV frente a Lucky Skywalker (Mark Hamill). Na versão original foram 17 os passos do método de Vogler, mas ele diluiu uns em outros, como fez com o "O auxílio sobrenatural". Além do mentor, geralmente o herói ganha um superpoder, um objeto mágico que o ajudará.
5.Travessia do limiar - O ponto de virada. Syd Field, autor de dezenas de obras sobre a escrita e a produção de roteiros, no livro Manual do roteiro, diz que o ponto de virada é o momento onde há um acontecimento radical que faz com que o herói saia novamente do seu lugar de conforto e siga, agora definitivamente, em direção a aventura. Na animação O Rei Leão, de 1994 Simba, retorna, adulto, para reivindicar seu reino.
6. Provas, aliados e inimigos - Rumo ao seu objetivo, o herói confronta desafios menores que testam sua força, sua ética, lealdade, habilidades, etc. Isso vai deixá-lo mais preparado para as aventuras que estão chegando. Nesse interim, ele vai conhecendo outras personagens e aprendendo a reconhecer quem é amigo, quem é o inimigo. Em Mulan de 1998, a protagonista se disfarça e parte para a guerra - no lugar do pai. No início geralmente a personagem falha nas tarefas que deve cumprir, mas no desenvolvimento da narrativa, tornar-se exímia. No caso de Mulan, ela se torna uma guerreira valente, que domina várias ferramentas de guerra.
7. Aproximação da caverna secreta - Aqui o personagem se volta para a própria história novamente e vê sua trajetória. Pode ser também momento que o herói tem um conflito interior.
8.A provação - é uma quase uma morte pela qual o heroi precisa passar para que finalmente, possa se consagrar vitorioso. É o confronto com o inimigo físico ou emocional, de onde o herói sai transformado.
9. A recompensa - É uma metáfora para a transformação do herói. A recompensa pode ser, sim, um tesouro, jóias, reconhecimento, mas também pode ser o amor de alguém, uma reconciliação, uma habilidade, um poder. É uma metáfora que simboliza a força do herói.
10. O caminho de volta - É sua jornada para casa, que não possui tantos desafios e perigos, e ainda oferece um novo momento para que ele possa refletir. Muitas vezes se confrontará com uma escolha, entre uma vitória pessoal ou coletiva. há um sentimento de felicidade, de acolhimento, com a percepção de missão cumprida ou ainda de perdão e aceitação ou de absolvição do passado.
11. A ressurreição - Esse é o acme emocional da narrativa. É onde o herói e seu inimigo se confrontam. Nesse desafio estão em jogo muito mais que a vida do herói, mas sim do amor dele, da comunidade, da família, enfim, do mundo e ele não pode perder
12. O retorno com o elixir - É o reconhecimento efetivo do herói. Mesmo quem não confiava na vitória dele, reconhece seus valores e a vitória. Quem tentou contra ele também será punido.
É importante dizer que no livro O Homem das Mil Faces - o lugar guardado às mulheres nunca é o do herói - embora ele tenha dito que as mulheres estão ali.
“As mulheres não precisam fazer a jornada. Em toda a tradição mitológica, a mulher está lá. Tudo o que ela precisa fazer é perceber que ela é o lugar que as pessoas estão tentando chegar”(Campbell, 1981).
Bem, no livro, a mulher aparece no "Encontro com a Deusa" e no "A Mulher como Tentação", um dos estágios que o herói tem que vencer. Por isso a psicóloga Maureen Murdock em 1999 lançou o livro a Jornada da Heroína, que claro, trataremos em outro artigo. ;)
Agora você tem todas as ferramentas para ver a maioria dos filmes e entender como a narrativa foi construídas. A maioria, porque existem aqueles que subvertem o livro de Campbell e o guia de Vogler. Também vamos dar exemplo no outro post, falou?
Aqui, a Jornada da Heroína de Maurren Murdock.
Já aqui você encontra a versão de Kim Hudson.
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