Se você já trabalhou em alguma corporação, ou qualquer outra empresa que adora seguir manuais e guias, onde as regras são sempre copiadas pelos RHs de alguma teoria em ascensão, com suas "premiações" pela eficiência - aquele alfajor vencido a quatro meses - dinâmicas infantis e outras táticas para envolver os funcionários, ou melhor, "colaboradores" (hahaha) em competições por produção, entende um pouco desse desespero contemporâneo - embora até exista uma certa "literatura" que promova esse processo de alienação e escravização. Como disse Paulo Freire: "quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor".
O que, para além de inaceitável, é inacreditável.
O dia a dia do trabalho de escritório e sua existência banal diária, tecnocrática, burocrática,limitadora, que muitos de nós enfrentamos, está presente na ótima série "Ruptura", da Apple TV.
"Ruptura" começa quando Mark S (Adam Scott) é promovido, depois que um amigo de longa data do escritório é demitido. Ele, então, precisa treinar uma nova recruta - e essa vai se mostrar uma empreitada desafiadora. Tudo porque Hellie (Britt Lower), ao perceber a ausência de significado de seu trabalho e se dar conta das "políticas da empresa" e todo o evangelho imposto aos funcionários, faz jus ao "prefixo" do nome e mostra não apenas indiferença, mas completa hostilidade a posição a qual se candidatou.
Isto ocorre porque, nesse mundo futuro (um momento não exatamente distinto do que vivemos), a corporação Lumon permite que os trabalhadores, ao colocarem um chip, separem seu "eu" trabalhador da versão de si mesmos fora do trabalho. Ou seja, no momento em que alguém entra no elevador do escritório, faz a transição e esquece tudo que aconteceu antes, ou seja, quem é "lá fora".
Vemos Hellie - Lower é excelente em retratar a resistência, cada vez mais desesperada de seu personagem - a nova recruta, lutar para se ajustar a essa nova realidade, porém, ela simplesmente não pode acreditar que seu outro "eu" escolheria ser chipado. Por conta disso, e para a angústia de Mark, ela faz inúmeras tentativas de deixar o emprego, e apesar de seus melhores esforços, ela não consegue fazer com que alguém aceite sua demissão. Isso, no entanto, desperta outra centelha de suspeita, entre várias que vão surgindo, e que levará a revolta dos funcionários.
Além da nova membra, Mark, que trabalha no departamento de Refinamento de Macrodados (M.D.R.) conta com Irving B. (John Turturro), uma figura cortês e culta, um defensor da política da empresa; e Dylan G. (Zach Cherry), um pragmático brincalhão que sempre compete pelos prêmios corporativos que a Lumon dá aos mais eficientes.
Não podemos esquecer de citar a Sra. Cobel - Patricia Arquette, igualmente maravilhosa - a chefe de Mark, uma presença arrasadora e ameaçadora. Como os outros funcionários seniores da Lumon, Cobel não pode ser demitida e é devota dos ensinamentos do misterioso fundador da Lumon, Kier Eagan – uma espécie de L. Ron Hubbard, o fundandor da Cientologia, mas do século XIX – cujas regras, os funcionários são treinados para aceitar como evangelho. Ela é a contrapartida abertamente punitiva do protocolo disciplinar mais velado da empresa. Quando os funcionários se comportam mal, ela os manda para um lugar chamado "sala de descanso", onde eles são obrigados a pedir perdão, nem que seja por milhares de vezes, com uma máquina parecida com um polígrafo testando sua sinceridade. Em uma reviravolta inicial na série, Cobel é revelada como a vizinha intrometida de Mark, a aparentemente inocente Sra. Selvig.
A histórica ganha impulso quando Mark S é contatado, fora da empresa, por seu melhor amigo - aquele que ele só lembra quando está dentro da Lumon - Pete, que passou por um procedimento para conectar suas duas vidas novamente: seu mundo inevitavelmente vira de cabeça para baixo e, a partir daí, começa uma corrida em busca da verdade.
A série também é visualmente linda. A sede da Lumon é o encontro da arquitetura brutalista de meados do século XX com a própria noção de corporação da Apple: corredores infinitos e imaculados em ângulos limpos, todos representados em tons de branco, cinza, azul e verde. A estética hipercontrolada vibrando com a tensão da repressão. A trilha do shows são músicas pop fáceis de ouvir - mas isso é a única coisa simples sobre a Lumon .
Há muito humor na narrativa, mas não se deixe enganar, este é um show sombrio e dramático, que alimenta suas raízes distópicas com um elixir sinistro. Ele incorpora muito sobre a evolução da tecnologia que nos cerca e, seus abusos, levando em consideração a intuição humana e nossa própria compreensão básica do que pode ser melhor em um mundo de possibilidades indescritíveis.
O mundo de “Ruptura” faz lembrar de uma série de precursores culturais na literatura, no teatro e no cinema: a marcha dos cordeiros ao abate da fábrica trabalhadores em “Metropolis” de Fritz Lang; a vigilância interminável de “1984” de George Orwell; a mesmice mortal da vida de escritório em “O Apartamento” de Billy Wilder; o desespero existencial em “O Elevador” de Harold Pinter; a apatia social de "Brazil", de Terry Gillian; a luta para nos livrar da dor emocional, como em "Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças"; a desumanização como em o "Poço", de Galder Gaztelu-Urrutia - e todos são difíceis de serem digeridos. A parte cômica é o que faz a série palatável para uma reflexão menos dolorida.
Mas o programa, em sua essência, trata de um mistério – um enigma que Mark e nós, espectadoras e espectadores querem resolver. Qual é o propósito do departamento que Mark e Hellie encontram no porão, que está cheio de cabras? Tem alguma coisa a ver com os regadores que são inexplicavelmente produzidos no departamento de Óptica e Design, chefiado pelo elegante e erudito Burt G. (Christopher Walken)? Aliás, Burt, é o interesse amoroso de Irving, e, apesar das tentativas da empresa de separá-los, a relação se sustenta - e isso levanta outra questão: por que a Lumon está tão desesperada para manter seus vários departamentos isolados?
O diretor e roteirista Ben Stiller mostra que tem uma grande capacidade de conectar vários gêneros de maneira precisa e envolvente, misturando a comédia sombria, a ficção científica e ao mistério. Na série "Escape at Dannemora”, da Showtime, que possui um ritmo pessimista, com longos silêncios e uma paleta monocromática monótona já indicava o talento de Stiller.
Ao nos enveredarmos pela narrativa da série de Ben Stiller, por fim, nos deparamos com questões éticas e suas implicações na vida contemporânea, que nos coloca na berlinda, uma vez que muito de nosso trabalho e lazer parece alienado de seu custo moral. Adoramos iPhones, mas preferimos não pensar no que é preciso para fazê-los. Tematicamente, a narrativa investiga a noção de liberdade em ambientes impregnados de poder, seja em sua forma bruta ou suave e amistosa. É irônico que "Ruptura" seja transmitido pela Apple TV e que possua uma estética claramente baseada nos padrões do patriarca, Steve Jobs.
Por fim, a série acaba sendo política a despeito de si mesma porque a percepção dos empregados de sua opressão mútua os torna proletariado - quase acidentalmente. No entanto, é quase impossível assistir ao programa e não pensar em paralelos da vida real. Por exemplo,três dias depois que os trabalhadores de um centro de atendimento da Amazon, nos Estados Unidos, se tornaram os primeiros da empresa a se sindicalizar com sucesso, o jornal Intercept informou que a Amazon estava desenvolvendo um aplicativo de mensagens internas para funcionários que bloqueava palavras como “sindicato”, trabalho escravo” e “aumento salarial”. Como Kier Eagan disse no "evangelho" da Lumon, em um dos episódios: "esteja sempre feliz". A positividade tóxica e o discurso motivacional a serviço do trabalho escravo, na sociedade do cansaço, descrita por Byung-Chul Han.
O filósofo chinês teoriza que a sociedade repressora do século XX, como foi descrita por Michel Foucault foi substituída por uma nova forma de coerção: a violência neuronal. Nela, os indivíduos se cobram cada vez mais eficiência e resultados. A estratégia é perfeita, mas não é nova. A positividade tóxica faz a massa agir como algozes de suas próprias ações - e das de outras e de outros. O patriarcado já fez isso antes, fazendo das mulheres carrascas de si mesmas e das outras.
Se na época atual poderíamos trabalhar menos e ganhar mais - a semana de quatro dias já é tendência em muitos países - a ideologia vendida pela positividade pratica uma lógica inversa e impiedosa: trabalhamos loucamente e recebemos menos pelo esforço. Isso degenerou em frases-clichê como "no pain, no gain"; "se eu quero, eu posso!' ou 'yes, we can' e em gente orgulhosa por "não ter tempo para nada" e por trabalhar 24/7. Claro que esse padrão de comportamento gerou um aumento de doenças como burnout, hiperatividade, depressão e transtornos de personalidade e adicções variadas.
Imagina quantos/quantas vão cair no papo do chip oferecido pela corporação?
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